“NÃO SOU NINGUÉM NA VIDA”
- Ana Paula Campos
- 25 de abr. de 2023
- 3 min de leitura

Como já comentei por aqui, a escola onde trabalho está em reforma, então, meus alunes vão com as mães, uma vez por semana, pegar/entregar as tarefas e conversar comigo. Umas das mães, uma querida que tive a honra de conhecer seu filho no ano passado, passou um tempo comigo, e entre um assunto e outro, falou de si.
Relatou que na adolescência era uma das alunas que mais dava trabalho na escola, e pela falta de maturidade, não deu muita atenção aos estudos. Cresceu, casou-se e teve filhos. Hoje, mãe atípica e dona de casa, desdobra-se para dar conta de todas as tarefas diárias.
O que mais me chamou atenção foi que em um dado momento, ela usou a seguinte expressão: “como eu não liguei de estudar, hoje não sou ninguém na vida, mas meu sonho é voltar a estudar”. Na hora eu nem falei nada. Fiquei ali, parada, olhando para aquela pessoa que admiro tanto por conhecer suas batalhas e compromisso com os filhos, e tentando entender o que faz essa mulher incrível pensar assim.
Infância. Tudo começa aqui e no lugar mais improvável, teoricamente, que isso acontecesse: escola! Acredito que todo mundo já passou pela experiência de ouvir uma professora dos primeiros anos perguntando: “o que você quer ser quando crescer?”. O filósofo indígena Ailton Krenak tem sérias críticas sobre isso. Ele considera um crime perguntar a uma criança o que ela deseja ser quando crescer, porque na verdade, ela já é!
Para nós, indígenas, a infância é sagrada e repleta de sabedoria. Somos almas velhas em um corpo novo, carregando nossas bagagens de vidas passadas. Uma criança não estuda para “se tornar um cidadão no mundo”. Ela já é um indivíduo que interage e promove mudanças.
Ao longo da vida este problema se agrava. Já reparam que, em cursos, quando alguém pede para você se apresentar, sempre começamos com nomes e profissões? Tem gente que, se deixar, passa a noite toda vomitando o currículo lattes na nossa cara. Não é nossa culpa. Somos condicionades a isto. Aqui entra o segundo lugar de massacre: universidade.
Acadêmicos estão diariamente visitando comunidades de pessoas racializadas para colher informações e levá-las para as universidades, a fim de que sejam validadas com teorias de brancos em uma banca de brancos que não faz a menor ideia do que passamos na pele. Gente medíocre que se engrandece com títulos de mestrado e doutorado, lendo capítulos isolados de livros sobre temas isolados, e quando concluem seu processo de titulações desejado, esquece de voltar para as comunidades e contribuir com quem lhe forneceu os caminhos para o tão desejado “sucesso Ocidental”.
Estas pessoas, mais tarde, vão passar por nós e não nos verão mais, porque estão em um lugar de privilégios, e o que elas disserem será validado por todos. São congressos repletos de mesas redondas com gente quadrada, que nunca nem sequer pisou os pés no mangue ou sentiu na pele o pavor da invasão cotidiana dos carcinicultores e garimpeiros, porque estão ocupadas demais cobrando uma fortuna por palestras que elas não terão a ética de dar os devidos créditos.
A mãe do meu aluno não precisa de títulos para ser alguém. Ela já é! Uma mulher grandiosa que administra o lar com a renda mínima que a família recebe, que corre de posto em posto para conseguir atendimento especializado, levando um não atrás do outro; uma mulher que visita a escola dos filhos semanalmente para saber como estão, porque já entendeu como esta sociedade opera e não quer que eles tenham o mesmo destino que ela.
Estamos no mês dos povos indígenas, mas oferecemos formação o ano todo. Nós, indígenas, que carregamos conhecimento ancestral e teórico! Nós que sabemos na pele, por experiência ou por relatos de parentes, como é nossa lida! Então, se você que está me lendo é um educadore, esqueça a academia. Procure por nós, que muitas vezes, vivemos do que fazemos.
E se você que me lê é alguém que se acha menor porque não teve sua validação com títulos, lembre-se sempre disso: VOCÊ, SÓ VOCÊ, SABE O QUE PASSOU PARA CHEGAR ATÉ AQUI, E MESMO COM TODAS AS ADVERSIDADES, CONTINUA AQUI, ENTÃO SIM, VOCÊ É ALGUÉM NA VIDA! UMA PESSOA GIGANTE!
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